OS EDITAIS DE CULTURA E A CULTURA DE
RESULTADO
Wilson Coêlho
"Nem todos os gestos são gestos sociais. A atitude de defesa perante uma mosca não é, em si própria, um gesto social; a atitude de defesa perante um cão pode ser um gesto social, se através dessa atitude se exprimir, por exemplo, a luta que um homem andrajoso tem que travar com os cães de guarda." Bertolt Brecht
Quando
o governo e a imprensa, a serviço da classe dominante, fingem desconhecer as
diferenças entre cultura, arte e a questão social, apesar de seus parentescos e
interdependências, todo discurso está fadado a embromação. A última reunião do
CEC – Conselho Estadual de Cultura, realizada aos 9 de abril p. p., foi um
fiasco ou, no mínimo, bizarra. Apesar do título estampado na primeira página do
Caderno Dois (A Gazeta, 13/04/2015), a reunião do CEC não foi nada polêmica,
considerando que o polêmico vem de pólen que tem a ver com a criação, no
sentido da reprodução, ou seja, não passou de um encontro em que o governo
simulou uma espécie de “queda de braço” para testar até que ponto o movimento
cultural está atento e como o estado vai se organizar para impor o seu projeto
autoritário para justificar sua incompetência em discutir de verdade políticas
públicas de cultura com a sociedade. Isso soa absurdo, considerando que se o
governo estivesse realmente interessado em atender à demanda do movimento
cultural, teria apenas que convocar os segmentos organizados da sociedade para
definir as prioridades e colocar em ação o que já está definido no PEC – Plano
Estadual de Cultura, votado no ano passado pela Assembleia Legislativa do
Espírito Santo.
Para
dar alguns exemplos da bizarrice da última reunião do CEC, tanto do governo
quanto da imprensa, gostaria de fazer alguns destaques. Da imprensa, por exemplo,
afirma que a reunião contava com “cerca de 80 pessoas, incluindo sociedade
civil”, como se a sociedade civil não fizesse parte do Conselho que é
paritário. Obviamente que também entendemos que o CEC não passa de um mero
apêndice da Secult – Secretaria de Estado da Cultura do ES. Outro blefe, tanto
da imprensa quanto do governo é fazer um discurso ornamental sobre “economia
criativa” que, no fundo, tem como única pretensão transformar toda e qualquer
manifestação artística e cultural em produto de mercado. Também não podemos
olvidar que, conforme o jornal, “de modo geral, a transversalidade foi bem
recebida pela classe artística...”
Numa
meia sentença, dois grandes equívocos. Primeiro, a chamada “transversalidade”,
além de não ser aceita pela maioria, chegou atravessada como um engodo para
justificar a supressão de alguns editais, além de alijar os municípios do
interior do estado. Segundo, tratar os artistas e a comunidade cultural como
“classe artística”, (não quero usar adjetivos) é muito estranho. Não existe
classe artística. Recapitulando: numa sociedade dividida em classes, como é o
caso da nossa, somente existem duas classes, a saber: uma dominante (opressora)
e, outra, dominada (oprimida). Tem gente que acha que estes termos são coisas
do passado por não perceber como se camuflam as formas de dominação para que os
dominados não percebam. Nos tempos que correm, por exemplo, empregada doméstica
parece pejorativo, dai, o nome vem sendo substituído por secretária. Mas a
relação entre o dominador e a subalterna continua a mesma.
Outra
coisa que não ficou nada clara e nem convincente sobre os editais foi a questão
do corte de orçamento na pasta da cultura, de R$ 105,7 milhões para R$ 33,9
milhões. Como é de domínio público e como o próprio secretário confirma, o
montante cortado do orçamento da cultura foi praticamente do que diz respeito a
verba que vinha sendo destinada ao Cais das Artes. Sendo assim, a redução do
orçamento dos editais se dá mais por um descaso e despreparo no trato com a
cultura e a arte. Ao mesmo tempo, foi anunciado que o orçamento para a ação
social é de R$ 69 milhões.
Por
um lado, apesar de um valor irrelevante no que deveria ser destinado à cultura,
levando em conta a arrecadação do estado e, deste volume, menos de 7 milhões
seria destinado aos editais, há um agravante: os membros do CEC não têm a
mínima informação de como serão utilizados os outros 26 milhões. Nenhuma
informação para a sociedade sobre os limites entres as atividades fins e as
atividades meios. Por outro lado, a Ação Social, com os seus 69 milhões, também
se nos parece outra incógnita sobre como os mesmos serão utilizados. Ademais,
há uma tônica em que os projetos da cultura estejam vinculados aos projetos
sociais. Sustentado pela lógica do disparate e no uso de suas atribuições, o
secretário diz que “a política de editais não é para premiar artistas
consagrados, mas para dar chance aos talentos emergentes.”
Será
que em vez de falarmos de política de editais (sic) não seria melhor dizermos
que os editais que existem não passam de uma forma de escamotear a falta de
políticas públicas para a cultura? Quando o secretário acrescenta que “a verba
é razoável” fica ainda mais confuso. Podemos dizer que tudo é razoável, apenas
pelo fato das coisas terem uma razão de ser ou que determinada coisa foi
raciocinada. Mas esta afirmação assim solta não diz ao que veio. Vale ressaltar
que a cultura tem sua demanda e, especialmente quando manifestada através da
arte, requer muitos cuidados e apoio para a formação, capacitação, qualificação,
criação e circulação das obras produzidas. Mas devemos pensar que muitas das
vezes a arte e a cultura estão em oposição, entendendo que a cultura tem o
compromisso de cultivar, cultuar e/ou render culto ao que é, ao passo que a
arte, apesar de oriunda no tempo e no espaço que se definem numa determinada
cultura, surge como uma necessidade de e a partir das inquietudes humanas,
colocar em xeque aquilo que é cultuado. A arte e a cultura, tanto pelo governo
quando pela mídia local, são sempre usadas como se uma fosse sinônimo da outra,
mas elas não são. Numa sociedade capitalista e, obviamente, dividida em
classes, tal “engano” é proposital, tendo em vista que confundir arte com
cultura significa colocar as duas na condição de mercadoria. Desta forma, a
arte aqui não é vista para além de uma cultura de resultados.
Assim,
soa absurdo que a secretaria de cultura com um orçamento de R$ 33,9 milhões,
onde somente 6 estejam destinados aos projetos culturais da sociedade, queira
deixar os artistas e agentes culturais duas vezes reféns. Primeiro, porque – no
lugar de uma política pública de cultura – cria editais no modelo de mercado
onde os interessados devem “competir entre si”, como na velha cartilha do
laisse-faire. Depois, porque – além dos insuficientes recursos e pulverizados
projetos – ainda “orienta” a finalidade dos projetos culturais para atender a
demanda da Ação Social que conta com recursos bem maiores e que, diga-se de
passagem, até agora não sinalizou nenhuma preocupação ou maiores compromissos com
a cultura e que sequer sabemos como será utilizado o orçamento.